Rio poluído, tremor de terra e propinas: o legado
de destruição deixado por mineradoras aos Kayapó
Com pesca e caça prejudicadas pela exploração de
manganês, indígenas entraram na Justiça e recorreram ao Ministério Público para
denunciar impactos ambientais comprovados pela Funai — em vão. Atividade
continua e mineradoras Buritirama e Irajá negam responsabilidade
Há seis anos que a terra treme e a poeira sobe na
Terra Indígena Kayapó. São os explosivos usados por uma mineradora para detonar
rochas de manganês, a apenas dois quilômetros do território indígena, perto da
cidade de Cumaru do Norte, no Pará.
De suas aldeias, os Kayapó veem passar os caminhões
lotados com o minério, enquanto sofrem com suas terras e rios contaminados.
“As caças fogem com as explosões. O rio agora é só
lama. A gente não come mais peixe nem caça; só o que compra no mercado, porque
a água tá contaminada e passa doença”, afirma a liderança Kubeí Kayapó, de 62
anos. “Dá saudade de comer peixe e de tomar banho no rio.”, diz a liderança.
O relato de um dos líderes mais antigos na defesa
da terra dos Kayapó reflete como a fauna, a flora e o modo de vida da etnia vêm
sendo prejudicados pela atividade minerária. O empreendimento pertence
atualmente à Buritirama Mineração (até o ano passado era da Mineração Irajá),
que possui uma licença para pesquisar a quantidade de minério existente no
local.
Mas os prejuízos socioambientais são apenas uma
parte dos problemas que os Kayapó enfrentam com as mineradoras. De acordo com
os indígenas e com relatórios da Funai e do Ministério Público Federal, há ao
menos outros dois: exploração em área irregular, pela ausência de consulta
prévia aos Kayapó, e criação de uma ‘especulação minerária’ – que corrompe
alguns indígenas, atrai garimpeiros ilegais e traz novos impactos
socioambientais.
A polêmica da exploração minerária às margens da
terra indígena começou em 2014, quando o Estado do Pará – que nos primeiros
seis meses deste ano exportou US$ 88 milhões em manganês – concedeu para a
Irajá uma licença ambiental chamada “autorização para lavra experimental”, que
permite que a empresa extraia o minério do local para testá-lo, inclusive
fazendo isso ao vender uma parte para o mercado.
Apesar de a área licenciada estar fora da terra
indígena, ela está dentro da chamada Zona de Amortização. “É uma faixa criada
para impedir que os impactos ambientais cheguem às comunidades”, afirma o
geólogo Edson Farias Mello, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Essa ‘zona tampão’, que também precisaria ser preservada, impediria, por
exemplo, que a poeira da qual os Kayapó reclamam chegasse às suas aldeias.
Poeira formada a partir da emissão de partículas do próprio manganês, como
explica Mello.
Os impactos relatados por Kubeí e por outros
integrantes da etnia foram formalizadas pelos Kayapó ao entrarem com uma ação
civil pública na Justiça em julho de 2019, pedindo indenização por danos
materiais, além da suspensão das atividades minerárias. No entanto, o processo
foi extinto pela Justiça com o argumento de que o Instituto Kenourukware Kayapó
(IKKA) não tem legitimidade para representar toda a etnia.
Três meses depois da ação na Justiça, os prejuízos
ao território Kayapó foram novamente confirmados, dessa vez pela própria Funai.
Em um relatório de outubro de 2019, o órgão registrou como havia constatado in
loco os impactos ambientais diretos e indiretos que o empreendimento, já de
propriedade da Buritirama, trazia aos indígenas devido à proximidade. O
documento constata que a água do local sofreu alterações pois as áreas
requeridas pela empresa abrigam rios que entram no território Kayapó e são
usados pelos indígenas como fonte de subsistência, seja para o consumo ou para
a pesca. A Funai também cita problemas como os ruídos causado pelas máquinas e
a perda da biodiversidade devido ao afugentamento da fauna.
As violações socioambientais já haviam sido
registradas em um relatório do Ministério Público Federal de 20 de setembro de
2018, fruto de uma reunião com 18 caciques Kayapó, que tratou da então omissão
da Funai sobre o tema. De acordo com a ata, os indígenas haviam procurado a
Funai quase um ano antes e “não obtiveram respostas sobre as explosões da
mineração.” Também foi relatado ao MPF pelos indígenas que “a mineradora não
consultou a aldeia sobre os danos ambientais, que entrou destruindo a mata e
causando explosões, assustando os animais e que os destroços das explosões
afetam a vegetação.”
Como em fevereiro do ano passado a Irajá vendeu os
direitos minerários para a Buritirama, que disputa com a Vale o posto de maior
produtora e exportadora de manganês do país, a reportagem questionou as duas
empresas sobre as denúncias feitas pelos Kayapó e confirmadas na visita dos
servidores da Funai.
A Irajá afirmou à Repórter Brasil que nos cinco
anos em que pôde explorar o local, nunca realizou atividades dentro do
território indígena e destacou não ter mais relação com a mina de manganês, já
que a vendeu para a Buritirama. A Buritirama, por sua vez, disse que, apesar de
ter a documentação necessária, ainda não iniciou as operações “e que por este
motivo, não há transporte de minério feito pela Buritirama na região”. Já
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) não
afirmou de quem são os caminhões carregando o minério que passam ao lado das
aldeias Kaiapó.
Apesar de a Buritirama afirmar não ter começado as
operações, o relatório da Funai não deixa dúvidas sobre a presença da empresa:
“Ao visitar a área, foi possível ver que a empresa Buritirama Mineração está
operando dentro da poligonal deliberada pelo Departamento de Nacional de
Produção Mineral, mas também foi visto atividades minerárias dentro do
território indígena, mas não foram encontrados os responsáveis pelo mesmo.”
Propina,
terceirizados e garimpo: O flagrante feito pelos servidores
da Funai, de que há garimpo dentro da terra indígena, é detalhado pelos Kayapó:
ele acontece por meio de pagamento de propina para alguns indígenas. Esses,
então, deixariam garimpeiros “terceirizados” entrar na TI e o minério extraído
seria vendido diretamente para a empresa de mineração.
De acordo com o relatório, o pagamento aos
indígenas, além de ser corrupção, gera conflitos na comunidade, pois há
discordância sobre a exploração do manganês dentro do território. Ele conta que
o valor da propina para cada caçamba de manganês dentro da terra indígena pode variar
entre R$ 100 e R$ 300. “Além de carregar o minério, eles corrompem os
indígenas”, disse. Em 2018, segundo ele, os indígenas flagraram e detiveram
funcionários da mineradora Irajá dentro da TI. Em seu relatório, a Funai também
registra que o empreendimento trouxe para a região uma especulação minerária
para a região, que pode inclusive “atrair pessoas para caça irregular”.
A Irajá não comentou a suposta detenção de seus
funcionários dentro da TI. A Buritirama
afirmou à Repórter Brasil que “não adquire produtos de outras origens e
apenas oferta minério extraído e tratado dentro de seus empreendimentos em
operação.”
Se por um lado a Buritirama afirma não ter começado
a atuar na área vizinha à Terra Indígena Kayapó, o mesmo não se pode dizer
sobre a Irajá – mineradora que entre 2014 e 2019 possuía autorização da
Secretaria de Meio Ambiente para estudar o potencial minerário da região.
Sob a aprovação da Agência Nacional de Mineração
(ANM), a Irajá (do grupo Santa Elina) poderia operar numa área de 3,3 mil
hectares retirando o minério e até vendendo uma parte para testar a viabilidade
econômica da atividade.
Apesar de a licença de 2014 autorizar a extração de
12 mil toneladas de manganês, a Irajá retirou
46 mil toneladas, segundo relatório enviado pela própria empresa à
Secretaria de Meio Ambiente cinco anos depois. No ano passado, a Irajá
solicitou mudança de titularidade da área para Buritirama, em uma transação
financeira que pode ter envolvido algumas dezenas de milhões de reais, segundo
uma fonte ligada ao setor.
Com cerca de 7 mil moradores divididos em 19
comunidades, a Terra Indígena Kayapó enfrenta o garimpo ilegal há duas décadas,
mas desde 2015 ele vai chegando cada vez mais perto das aldeias. Uma atividade
que inflama a contaminação dos rios e peixes, além da derrubada da floresta –
somente em 2019, 1.700 hectares foram desmatados decorrente do garimpo ilegal,
segundo o sistema que monitora o
desmatamento da Rede Xingu+. Mesmo não sendo permitida a exploração minerária
em terras indígenas, a pressão pela liberação é uma ameaça constante por meio
de um projeto de lei elaborado pelo Executivo e que está, por enquanto, parado
no Congresso.
‘Ninguém veio conversar com a gente’
Seja no ar que fica empoeirado, nos rios que se
tornam barrentos ou nos peixes que não podem mais ser consumidos. Se há risco
de um negócio gerar impacto negativo, é preciso que a comunidade seja ouvida
antes. “A chamada consulta prévia é necessária sempre que uma atividade
regulada pelo Estado afetar terras indígenas”, explica o advogado do Instituto
Socioambiental (ISA), Johnatan Razen, acrescentando que esse diálogo deve
seguir os protocolos de cada povo e que a omissão desse diálogo contraria um
direito previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT).
“Nunca ninguém, de nenhuma das empresas, veio
conversar com a gente. Já tentamos abrir diálogo, mas não há nenhuma relação
deles com a gente”, afirma Eliseu Kayapó.
“A mineradora está praticamente dentro da reserva,
é bem na nossa divisa mesmo”, afirma Davi Kayapó, liderança indígena e filho de
Kubeí. “A gente tem pouco conhecimento sobre os produtos que eles usam, mas
sentimos o cheiro da bomba quando explode e vemos a poeira que levanta. A água
está poluída e quem come o peixe fica doente, com dor de cabeça, dor de
barriga, tontura e antigamente não era assim.” Mesmo assim, Davi reitera que
eles jamais foram ouvidos.
Responsabilidade de quem?
O jogo de empurra entre as autoridades impera
quando o assunto é a responsabilidade por ouvir a comunidade afetada. A questão
da consulta pública aos indígenas, por exemplo, cabe à Funai – que pode
promovê-la a partir de provocação da Secretaria do Meio Ambiente.
No entanto, segundo Razen, advogado do ISA, é comum
que a Funai também seja avisada sobre a necessidade de diálogo pela própria
empresa que vai realizar a atividade – o que poderia ter sido feito pela Irajá
ou pela Buritirama. As duas empresas se ausentaram dessa responsabilidade e
afirmaram à Repórter Brasil que o processo cabe apenas à Secretaria de Meio
Ambiente. (Leia as respostas na íntegra)
A secretaria, por sua vez, afirmou que “cabe à empresa
apresentar um estudo de impacto à Funai” e disse ter comunicado tanto a
mineradora como a própria Funai sobre a proximidade entre o empreendimento e a
terra indígena. A secretaria também afirmou que está tratando do assunto junto
aos responsáveis pelo empreendimento. A Funai não respondeu aos questionamentos
da Repórter Brasil. Site Repórter Brasil
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